ArlindoMachadoRepensando Flusser e as Imagens Técnicas Abstract: The last two or three decades, when contemporary art has been made more and more with the help of the ultimate technologies (video art, computer art, telematic art and so on), the main question that it has to answer can be plainly put this way: is the artist who seriously works with new technologies supposed to write his or her own programs, and to build or change the machines he or she needs, or otherwise is it enough only to know how to handle ready-made programs and machines? In his influential book Philosophy of the Black Box, Vilém Flusser criticises people who only stand outside the machines and programs, and are unable to "whiten" the interior of the "black box". According to Flusser, technical images (photographs, holograms, video sequences, computer graphics) are products of the scientific concepts materialized in the software or the hardware. If the artist is not skillful enough to interfere into the hidden inwards of the devices and programs, he or she will do nothing but repeat the coding process already programmed on the behaviour of the machine. Se existe hoje uma discussão inevitável no círculo dos artistas que experimentam com dispositivos ou processos tecnológicos, essa discussão é certamente a que diz respeito à própria natureza da intervenção artística numa época marcada pelo tecnocentrismo. A primeira questão que emerge é sempre a mais simples e a mais difícil de responder: em que nível de competência tecnológica deve operar um artista que pretende realizar uma intervenção verdadeiramente fundante? Deve operar ele apenas como usuário dos produtos colocados no mercado pela indústria da eletrônica? Deve operar ele como engenheiro ou programador, de modo a poder construir as máquinas e os programas necessários para dar forma a suas idéias estéticas? Ou ainda deve operar ele no plano da negatividade, como alguém que se recusa a fazer uma utilização legitimadora da tecnologia? Edmond Couchot (1990: 48-59) coloca a questão nos seguintes termos: os dispositivos utilizados hoje pelos artistas para a construção de seus trabalhos (computadores, câmeras, sintetizadores etc.) aparecem a eles inicialmente como caixas pretas (boîtes noires), cujo funcionamento misterioso lhes escapa parcial ou totalmente. O fotógrafo, por exemplo, sabe que se apontar a sua câmera para um motivo e disparar o botão de acionamento, o aparelho lhe dará uma imagem normalmente interpretada como uma réplica bidimensional do motivo que posou para a câmera. Mas o fotógrafo, em geral, não conhece todas as equações utilizadas para o desenho das objetivas, nem as reações químicas que ocorrem nos componentes da emulsão fotográfica. A rigor, pode-se fotografar sem conhecer as leis de distribuição da luz no espaço, nem as propriedades fotoquímicas da película, nem ainda as regras da perspectiva monocular que permitem traduzir o mundo tridimensional em imagem bidimensional. As câmeras modernas estão automatizadas a ponto de até mesmo a fotometragem da luz e a determinação do ponto de foco serem realizadas pelo aparelho. Não é muito diferente o que ocorre com o computador. Mas a caixa preta que chamamos de computador, como adverte Couchot, não é constituída apenas de circuitos eletrônicos, de hardware (processadores, memória); ela compreende também as linguagens formais, os algoritmos, os programas, numa palavra, o software. Assim, enquanto o aparelho fotográfico é programado já na fábrica para realizar determinadas funções e apenas essas funções, o computador, pelo contrário, aparece como uma máquina genérica, que se pode programar de mil maneiras diferentes para cumprir funções teoricamente infinitas, inclusive para simular qualquer outro aparelho ou instrumento. Numa palavra, no computador estão sempre implicadas duas diferentes modalidades de caixa preta: uma "dura", hard, cujo programa de funcionamento já está inscrito nos seus próprios elementos materiais, e outra "imaterial", soft, que diz respeito ao conjunto de instruções formais, em geral apresentadas em linguagem matemática de alto nível, destinadas a determinar como o computador e seus periféricos vão operar. Voltando a Couchot, deve então o artista penetrar obrigatoriamente no interior da caixa preta, para interferir em seu funcionamento interno (seja positivamente, no sentido de colocar a máquina a trabalhar em benefício de suas idéias estéticas, seja negativamente, no sentido de desvelar as determinações que ela impõe), ou deve situar-se ele do lado de fora, no sentido de preservar um savoir faire estritamente artístico? Ou dito de forma mais direta: quem utiliza o computador para criar trabalhos de intenção artística deve saber programar, ou é suficiente o domínio de um bom programa comercial? Longe de se reduzir a um problema de ordem metodológica ou a uma questão puramente pragmática, essa pergunta que hoje se repete com tanta insistência esconde problemas filosóficos importantes e estratégicos para se definir o estatuto da arte nas sociedades industriais ou pós-industriais. Uma das formulações mais agudas desse problema foi realizada por Vilém Flusser, importante pensador tcheco que viveu 31 anos no Brasil, tendo sido o principal mentor intelectual de várias gerações de artistas brasileiros que enfrentaram o desafio da tecnologia. Em meados dos anos 80, Flusser publicou, em duas edições ligeiramente diferentes, uma em portugês e outra em alemão, sua obra mais importante, que se chama justamente Filosofia da Caixa Preta, uma reflexão densa sobre as possibilidades de criação e liberdade numa sociedade cada vez mais centralizada pela tecnologia. Na Alemanha, essa obra teve ainda um desdobramente posterior, sob o título Ins Universum der technischen Bilder (1985a). Cinco anos depois de seu falecimento, Flusser permanece ainda, nos círculos que discutem a arte da era eletrônica, um pensador pouco conhecido, mas cuja contribuição fundamental nesse campo demanda resgate urgente. Em Filosofia da Caixa Preta, Flusser dirige suas reflexões na direção das chamadas imagens técnicas, ou seja, daquelas imagens que são produzidas de forma mais ou menos automática, ou melhor dizendo, de forma programática, através da mediação de aparelhos de codificação. Flusser se refere amiude à imagem fotográfica, por considerá-la o primeiro, o mais simples e ao mesmo tempo o mais transparente modelo de imagem técnica, mas a sua abordagem se aplica facilmente a qualquer espécie de imagem produzida através de mediação técnica, inclusive às imagens digitais, que parecem ser o motivo mais urgente e inconfessado dessas reflexões. A mais importante característica das imagens técnicas, segundo Flusser, é o fato delas materializarem determinados conceitos a respeito do mundo, justamente os conceitos que nortearam a construção dos aparelhos que lhes dão forma. Assim, a fotografia, muito ao contrário de registrar automaticamente impressões do mundo físico, transcodifica determinadas teorias científicas em imagem, ou para usar as palavras do próprio Flusser, "transforma conceitos em cenas" (1985b: 45). As fotografias em preto-e-branco, que interpretam o visível em termos de tons de cinza, demonstram bem como as teorias da óptica e da fotoquímica estão em seu origem. Mas também nas fotografias em cores, o colorido pode ser tão "teórico" ou abstrato quanto nas imagens em preto-e-branco. No dizer de Flusser, o verde do bosque fotografado é imagem do conceito de "verde", tal como determinada teoria química o elaborou, e a melhor prova disso é que o "verde" produzido por uma película Kodak difere significativamente do "verde" que se pode obter em películas Orwo ou Fuji e do "verde" flamejante que se pode exibir em uma tela eletrônica. Talvez tenha sido necessário esperar até o surgimento do computador para que as imagens técnicas se revelassem mais abertamente como resultado de um processo de codificação icônica de determinados conceitos científicos. No computador, tanto a "câmera" que se utiliza para descrever complexas trajetórias no espaço, como as "objetivas" de que se lança mão para dispor diferentes campos focais, como ainda os focos de "luz" distribuídos na cena para iluminar a paisagem já não são objetos físicos, mas operações matemáticas e algoritmos baseados em alguma lei da física. Eis porque, a partir do computador, a hipóstase do projeto fotográfico se desvela. As imagens técnicas, ou seja, as representações icônicas mediadas por aparelhos, não podem corresponder a qualquer duplicação inocente do mundo, porque entre elas e o mundo se interpõem transdutores abstratos, os conceitos da formalização científica que informam o funcionamento de máquinas semióticas tais como a câmera fotográfica e o computador. É possível, portanto, definir as máquinas semióticas pela sua propriedade básica de estarem programadas para produzir determinadas imagens e para produzi-las de determinada maneira, a partir de certos princípios científicos definidos a priori. As formas simbólicas (imagens) que essas máquinas constróem já estão, de alguma maneira, inscritas previamente (pré-escritas, programadas) na sua própria concepção e na concepção de seus(s) programa(s) de funcionamento. Isso quer dizer que uma máquina semiótica condensa em suas formas materiais e imateriais um certo número de potencialidades e cada imagem técnica produzida através dela representa a realização de algumas dessas possibilidades. Na verdade, programas são formalizações de um conjunto de procedimentos conhecidos, onde parte dos elementos constitutivos de determinado sistema simbólico, bem como as suas regras de articulação são inventariados, sistematizados e simplificados para serem colocados à disposição de um usuário genérico, preferencialmente leigo. Ao usuário que lida com essas máquinas e que extrai delas as imagens técnicas, Flusser dá o nome de funcionário. Para o funcionário, as máquinas semióticas são caixas pretas cujo funcionamento e cujo mecanismo gerador de imagens lhe escapam parcial ou totalmente. O funcionário lida apenas com o canal produtivo, mas não com o processo codificador interno. Mas isso não importa, porque tais caixas aparecem a ele de forma amigável (user-friend ), ou seja, elas podem funcionar e colocar em operação o seu programa gerador de imagens técnicas mesmo quando o funcionário que as manipula desconhece o que se passa em suas entranhas, um pouco como o motorista pode dirigir um carro sem se preocupar com o funcionamento do motor. O funcionário domina apenas o input e o output das caixas pretas. Ele sabe como alimentar as máquinas e como acionar os botões adequados, de modo a permitir que o dispositivo cuspa as imagens desejadas. Assim, o funcionário escolhe, dentre as categorias disponíveis no sistema, aquelas que lhe parecem mais adequadas e com elas constrói a sua cena. Uma vez que pode escolher, o funcionário acredita estar criando e exercendo uma certa liberdade, mas a sua escolha será sempre programada, porque é limitada pelo número de categorias inscritas no aparelho ou máquina. Para produzir novas categorias, não previstas na concepção do aparelho, seria necessário intervir no plano da própria engenharia do dispositivo, seria preciso reescrever o seu programa, o que quer dizer: penetrar no interior da caixa preta e desvelá-la. Máquinas e programas são criações da inteligência do homem, são materializações de um processo mental, pensamento que tomou corpo, como já defendia, em seu tempo, Gilbert Simondon (1969). Mas, desgraçadamente, essas mesmas máquinas e programas, baseiam-se, em geral, no poder de repetição e o que elas repetem até a exaustão são os conceitos da formalização científica. A repetição indiscriminada conduz inevitavelmente à estereotipia, ou seja, à homogeneidade e previsibilidade dos resultados. A multiplicação à nossa volta de modelos pré-fabricados, generalizados pelo software comercial, conduz a uma impressionante padronização das soluções, a uma uniformidade generalizada, quando não a uma absoluta impessoalidade, conforme se pode constatar em encontros internacionais tipo Siggraph, onde se tem a impressão de que tudo o que se exibe foi feito pelo mesmo designer ou pela mesma empresa de comunicação. Se é natural e até mesmo desejável que uma máquina de lavar roupas repita sempre e invariavelmente a mesma operação técnica, que é a de lavar roupas, não é todavia a mesma coisa que se espera de aparelhos destinados a intervir no imaginário, ou de máquinas semióticas cuja função básica é produzir bens simbólicos destinados à inteligência e à sensibilidade do homem. A estereotipia das máquinas e processos técnicos é, aliás, o principal desafio a ser vencido na área da informática, talvez até mesmo o seu dramático limite, que se busca superar de todas as formas através de uma por enquanto hipotética Inteligência Artificial. Numa primeira aproximação, Flusser adverte, portanto, sobre os perigos da atuação puramente externa à caixa preta. Na era da automação, o artista, não sendo capaz ele próprio de inventar o equipamento de que necessita ou de (des)programá-lo, queda-se reduzido a um operador de aparelhos, isto é, a um funcionário do sistema produtivo, que não faz outra coisa senão cumprir possibilidades já previstas no programa, sem poder, todavia, no limite desse jogo programado, instaurar novas categorias. Da parte da crítica e do público, o que se percebe é uma crescente dificuldade, à medida que os programas se tornam cada vez mais poderosos e "amigáveis", de saber discriminar entre uma contribuição original e a mera demonstração das virtudes de um programa. Nada pode ser mais desconfortável para um realizador de trabalhos de computação gráfica ou multimídia do que aquela pergunta inevitável que lhe é desferida imediatamente após qualquer exibição: que programa você usou para fazer isso? Uma vez que permanecemos incapazes de saber o que se passa no interior da caixa preta, "somos, por enquanto, analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como decifrá-las" (Flusser, 1985b: 21). Nesse sentido, assistimos hoje a um certo degringolamento da noção de valor em arte: os juízos de valorização se tornam frouxos, ficamos cada vez mais condescendentes em relação a trabalhos realizados com mediação tecnológica, porque não temos critérios suficientemente maduros para avaliar a contribuição de um artista ou de uma equipe de realizadores. Como conseqüência, a sensibilidade começa a ficar embotada, perde-se o rigor do julgamento e qualquer bobagem nos excita, desde que pareça estar up to date com o estágio atual da corrida tecnológica. A verdadeira tarefa da arte (e da filosofia que a ampara teoricamente) seria, ainda segundo Flusser, se insurgir contra essa automação estúpida, contra essa robotização da consciência e da sensibilidade, e recolocar as questões da liberdade e da criatividade no contexto de uma sociedade cada vez mais informatizada e cada vez mais dependente da tecnologia. Quer isso então dizer que uma intervenção artística realmente fundante se torna impraticável fora de um posicionamento interno à caixa preta? Flusser parece dizer que sim. "Toda crítica da imagem técnica -- diz ele -- deve visar o branqueamento dessa caixa" (1985b: 21). Couchot, entretanto, aponta alguns casos em que o artista, mesmo trabalhando com programas comerciais e aparelhos que ele não pode modificar, é esperto o suficiente para trazer o computador para o seu domínio, em vez de se deslocar ele próprio para o domínio pouco conhecido da informática. Isso acontece naquelas situações em que o computador e a imagem digital aparecem em contextos híbridos, misturados com outros procedimentos e outros dispositivos mais familiares ao realizador, como nas instalações e também nas chamadas poéticas das passagens (Bellour, 1990: 37-56), em que as imagens migram de um suporte a outro, ou então cohabitam um mesmo espaço de visualização, mesmo sendo de natureza distinta (artesanais, fotográficas, digitais). Couchot (1990: 51-2) invoca o caso do artista alemão Peter Weibel, cujo Gesänge des Pluriversums (1986-88) utiliza a hibridização de recursos para "substituir o ponto de vista central imposto pelo olho da câmera por um olhar expandido e flutuante sobre o mundo", e também o do polonês Zbigniew Rybczynski, cujo Steps (1987) insere digitalmente imagens eletrônicas de turistas norte-americanos num antigo filme mudo de Serguei Eisenstein. O grande problema de toda a argumentação de Flusser é que ele concebe as potencialidades inscritas nos aparelhos e seus programas como sendo finitas: elas são amplas, mas limitadas em número. Isso quer dizer que, mais cedo ou mais tarde, com a ampliação de suas realizações, as possibilidades de uma máquina semiótica acabarão por ser esgotadas. Ora, que há limites de manipulabilidade em toda máquina ou processo técnico é algo de que só podemos fazer uma constatação teórica, pois na prática esses limites estão em contínua expansão. Que aparelhos, suportes ou processos técnicos poderíamos dizer que já tiveram esgotadas as suas possibilidades? Mesmo a fotografia, com mais de um século e meio de prática efetiva, com uma utilização generalizada em todas as esferas da produção humana, ainda não se pode dizer que tenha sido esgotada e é difícil imaginar que algum dia possamos dizer isso (Machado, 1993a: 37). O próprio Vilém Flusser (1983: 6-7) já saudou a obra recente do fotógrafo alemão Andreas Müller-Pohle como um trabalho que faz saltar o gesto do fotógrafo para além do jogo programado das tecnologias da câmera e da película. Dada a complexidade dos conceitos invocados na concepção de uma máquina semiótica, poderíamos então dizer que sempre existirão potencialidades dormentes e ignoradas, que o artista inquieto acabará por descobrir, ou até mesmo por inventar, ampliando portanto o universo das possibilidades conhecidas de determinado meio. Flusser, na verdade, não ignora isso. Ele reconhece que existem regiões, na imaginação dos aparelhos, que permanecem inexploradas, regiões que o artista navega preferencialmente, para trazer à luz imagens nunca antes visualizadas. Na sua situação-limite, a relação entre usuário e aparelho aparece como um jogo, em que o primeiro usa toda a sua astúcia para submeter a intenção do aparelho à sua própria, enquanto o segundo trabalha no sentido de resgatar as descobertas do primeiro para os seus próprios propósitos. Flusser reconhece que esse jogo se dá de forma superlativamente concentrada no campo da arte de caráter experimental, onde o artista luta por desviar o aparelho de sua função programada e, por extensão, para evitar a redundância e favorecer a invenção. Mas, até onde os seus textos permitem avançar nessa direção, Flusser parece conceber de forma demasiado pessimista o destino dessa relação. Para ele, mais cedo ou mais tarde, o universo tecnológico acabará por incorporar as descobertas e os desvios dos artistas para os seus fins programados. Toda invenção, toda rota nova descoberta serão acrescentadas ao universo de possibilidades do(s) aparelho(s), de modo que se pode dizer que, no fim das contas, as máquinas semióticas se alimentam das inquietações dos artistas experimentais e as utilizam como um mecanismo de feed-back para o seu contínuo aperfeiçoamento. Aqui talvez se possa corrigir Flusser em alguns aspectos de sua argumentação. Existem diferentes maneiras de se lidar com um aparelho ou um programa e de lançar mão deles para um projeto estético. Algumas dessas utilizações se desviam em tal intensidade do projeto tecnológico original que equivalem a uma completa reinvenção do meio. Quando Nam June Paik, com a ajuda de imãs poderosos, desvia o fluxo dos elétrons no interior do tubo iconoscópico da televisão, para corroer a lógica figurativa de suas imagens; quando fotógrafos como Frederic Fontenoy e Andrew Davidhazy modificam o mecanismo do obturador da câmera fotográfica para obter não mais o congelamento de um instante, mas um "fulminante processo de desintegração das figuras resultante da anotação do tempo no quadro fotográfico " (Machado, 1993b: 105); quando William Gibson, em seu romance digital Agrippa (1992), coloca na tela um texto que se embaralha e se destrói, graças a uma espécie de vírus de computador capaz de detonar os conflitos de memória do aparelho, não se pode mais, em nenhum desses exemplos, dizer que os realizadores estão apenas cumprindo "possibilidades" do meio. Eles estão, na verdade, atravessando os limites da máquina e reinventando radicalmente o seu programa e as suas finalidades. O que faz um verdadeiro criador, em vez de submeter-se simplesmente a um certo número de possibilidades impostas pelo aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina de que ele se utiliza, é manejá-la no sentido contrário de sua produtividade programada. Talvez até se possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funções e finalidades. Longe de deixar-se escravizar por uma norma, por um modo estandardizado de comunicar, obras realmente fundantes na verdade reinventam a maneira de se apropriar de uma tecnologia. Nesse sentido, as "possibilidades" dessa tecnologia não podem ser vistas como estáticas ou pré-determinadas; elas estão, pelo contrário, em permanente mutação, em contínuo redirecionamento e crescem na mesma proporção que o seu repertório de obras criativas. Mas se é preciso corrigir Flusser nos aspectos mais deterministas de sua argumentação, não se pode perder de vista que o objetivo principal de sua indagação filosófica é a crítica da padronização do ato criador e do embotamento da sensibilidade que caracterizam o ambiente industrial ou pós-industrial das máquinas, dos programas e dos funcionários, crítica essa que é condição sine qua nom de toda intervenção estética renovadora. Até aqui, examinamos as possibilidades de criação sob o viés das obras que se pode conceber através da mediação de máquinas não necessariamente inventadas pelos próprios artistas. Talvez seja necessário agora inverter o enfoque e examinar o problema a partir da consideração das próprias máquinas e da sua real intervenção na experiência estética contemporânea. Antes de mais nada, é preciso considerar que, em geral, utilizamos a palavra máquina para designar um espectro demasiado amplo e diversificado de dispositivos técnicos, como se todos eles fossem da mesma natureza e funcionassem da mesma forma. Heinz von Foerster (1984: 2-24) já advertiu, no entanto, que devemos distinguir entre máquinas triviais -- dispositivos conceituais com regras de operação determinísticas e bem definidas -- e máquinas não-triviais, cujos mecanismos internos, por serem variáveis, instáveis, auto-alimentados e sujeitos a intervenções do acaso, permitem obter, como resultado, objetos ou ações imprevisíveis e paradoxais. Lembremo-nos ainda de que, para Simondon, o automatismo (ou sua forma industrial e econômica, a automação ) corresponde ao grau mais baixo de definição dos objetos técnicos. "O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas, aquele que se pode dizer que eleva o seu grau de tecnicidade, corresponde não a um incremento do automatismo, mas, pelo contrário, à introdução de uma certa margem de indeterminação em seu funcionamento. É essa margem que permite à máquina tornar-se sensível a uma informação exterior" (Simondon, 1969: 11). Nesse sentido, um dos casos mais paradoxais na cena artística contemporânea é o de Harold Cohen, criador de Aaron, um programa que capacita o computador a pintar como um artista plástico. O caso Cohen é muito especial porque diz respeito a um artista que teve grande prestígio na Inglaterra nos anos 60 e que poderia ter dado continuidade a uma carreira estável e confortável, se alguma inquietação profunda não o tivesse levado a abandonar a pintura, migrar para os Estados Unidos, integrar-se a um circunspecto grupo de cientistas que promovia pesquisas no terreno da Inteligência Artificial, na tentativa um tanto quixotesca de construir uma máquina de pintar controlada por computador. Carente de formação matemática e científica, Cohen teve de amargar mais de uma década estudando linguagens de computador, até que estivesse em condições de mostrar publicamente sua máquina funcionando ao vivo e produzindo pinturas remotamente figurativas. O mais curioso nas imagens produzidas pelo Aaron é que elas não apenas jamais repetem a iconografia e o geometrismo convencionais da computação gráfica, como também jamais se repetem a si mesmas. O programa se baseia em uma série de regras e metas, mas situações randômicas se encarregam de relativizar a rigidez dessas diretrizes e um sistema de feedback faz o computador voltar sempre para trás, na tentativa de se corrigir, se aperfeiçoar, checar o seu progresso e determinar os passos a serem dados em seguida. Não existindo uma autoridade central, que controle o cumprimento integral das regras e metas, o sistema depende então de agentes autônomos que se comunicam apenas no plano local, como se fossem formas orgânicas tentando se adaptar ao ambiente [Veja algumas imagens geradas pelo programa Aaron]. Se os quadros concebidos pelo Aaron não suportam termos de comparação com obras de Pollock, Newman, Rothko ou Dubuffet, é preciso considerar, entretanto, que Cohen não visa exatamente resultados em termos de imagens, mas o processo de construção de Aaron como um meio de explorar as suas próprias idéias sobre arte. Em geral, Cohen sempre evitou expor os desenhos, mas preferia mostrar a própria máquina produzindo-os, não porque os desenhos não fossem bons -- eles o são, isso é o mais surpreendente --, mas porque o objetivo principal de Aaron é "clarificar os processos envolvidos nas atividades de fazer arte" (Cohen, apud McCorduck, 1991: 41). Atuando, portanto, na fronteira mais indefinida entre arte e ciência, Cohen parece nos querer dizer que sua obra é Aaron e não as imagens que este último permite conceber. Quando Flusser propõe uma atuação direta no interior da caixa preta ele, com certeza, não estava autorizando uma dissolução da arte na técnica e, nesse sentido, sua perspectiva é radicalmente diversa daquela que é hoje tão corrente e que vê a atividade estética passando progressivamente das mãos do artista para as mãos do engenheiro ou do cientista. De fato, enquanto a maior parte dos analistas afirma que a essência do valor artístico está agora no desenvolvimento de software (vide, por exemplo, Pearson 1988: 73s), retomando portanto uma antiga idéia de Pound (1996: 57-83), segundo a qual as máquinas e processos técnicos podem ser encarados como formas dinâmicas dotadas de beleza estética em si, Flusser desconfia de que a tecnologia se converte hoje numa forma de constrangimento para o criador, numa preocupação, no sentido heideggeriano de Sorge (envolvimento concentrado e exclusivo), que muitas vezes o desvia de sua perspectiva radical e retira a força de seus trabalhos. Na verdade, não é preciso muita filosofia para verificar isso. Basta observar qualquer congresso de arte eletrônica, de música digital ou de escritura interativa, ou folhear qualquer revista dedicada a essas especialidades, para se constatar que o discurso estético, o discurso musical e o discurso literário foram completamente substituídos pelo discurso técnico, e que questões relativas a algoritmos, hardware e software tomaram completamente o lugar das novas idéias criativas. O resultado é um panorama extraordinariamente rico de máquinas e processos técnicos que se aperfeiçoam sem cessar, mas o que se produz efetivamente com esses dispositivos, com raras e felizes exceções, é limitado, conformista e encontra-se abaixo do nível mediano. Aqui reside a diferença introduzida por Cohen. O gigantesco empenho na direção de uma máquina de pintar não reduz jamais a sua démarche a um projeto puramente tecnológico, malgrado o desafio técnico tenha sido enfrentado em toda sua extensão e profundidade. Ao longo do processo inteiro de criação de Aaron, Cohen não se sentiu tentado a refletir ou a escrever sobre as soluções técnicas (algoritmos, rotinas de programas) que ele foi encontrando para resolver o desafio da máquina de pintar. Pelo contrário, sua produção teórica no período se concentra surpreendentemente numa discussão densa sobre questões de natureza ontológica sobre o significado da arte. Isso se explica: para construir seriamente uma máquina capaz de produzir arte (e não mais um gadget industrial), Cohen teve de se perguntar o tempo todo o que é arte, o que se passa na cabeça de um artista quando ele está criando, que caminhos intrincados e imprevisíveis ele atravessa para chegar a resultados consistentes. Mais do que dar forma automática a regras e cânones cristalizados pela história da arte, Cohen teve de enfrentar o desafio de uma máquina permanentemente in progress, de uma máquina indeterminada e interminável, porque interminável é também a discussão sobre o sentido e o enigma da arte. Aaron é, portanto, um caso raro de "máquina" (agregado de hardware e software ) cujo processo criativo pode ser integrado sem constrangimentos ao conjunto de indagações e experiências da arte atual, onde ele ocupa inclusive um lugar privilegiado por apontar para uma via não redutora. Na verdade, a penetração concreta no interior da caixa preta é uma possibilidade que Flusser admite, mas não chega a explorar mais detidamente, preferindo desviar o enfoque para o campo liberador da filosofia. Couchot, entretanto, enfrenta abertamente a questão e vislumbra exemplos dessa intervenção desveladora na obra de um certo número de artistas contemporâneos. Coincidentemente, a maioria desses realizadores acumula, ao lado de uma cultura artística sofisticada, também uma sólida formação científica (uns são engenheiros eletrônicos, outros especialistas em física ou em ciências da computação), podendo portanto criar os seus próprios dispositivos e programas em qualquer nível de competência tecnológica. Alguns deles utilizam programas "abertos", ou seja, programas que aceitam instruções e modificações em linguagens de programação. Outros partem para a autoria de seus próprios programas. Hervé Huitric e Monique Nahas, por exemplo, conceberam especialmente para seu trabalho artístico o programa Rodin, um modelador de formas tridimensionais capaz de gerar sutis distorções através de cálculos de curvas paramétricas. Com esse recurso informático, os autores conseguem se desviar da tendência naturalista da computação gráfica mais convencional e propor um trabalho mais original e de inegável beleza. Michel Bret escreveu ele próprio o programa Anyflo, que lhe permite colocar em movimento um bestiário digno de Borges, provoado de criaturas delirantes e impossíveis, cujo comportamento não pode ser inteiramente previsto, pois depende das interações que vão efetivamente acontecer na cena (Bret, 1988: 3-9). William Latham, por sua vez, utiliza um programa chamado Mutator, concebido por seus colaboradores Stephen Todd e Peter Quarendon especialmente para "esculpir" complexas formas tridimensionais. Em obras como The Conquest of Form (1988) e The Evolution of Form (1990), Latham pôde colocar em movimento e em metamorfose formas abstratas de uma beleza incomum, fazendo combinar mutações aleatórias com escolhas precisas efetuadas pelo artista (Popper, 1993: 96). Já Yoichiro Kawaguchi, um dos artistas mais originais no âmbito da computer art, utiliza um programa desenvolvido por ele próprio, o Morphogenesis Model. Associado a um complexo sistema computacional de modelação e animação chamado Metaball, esse programa permite conceber formas de uma complexidade crescente, formas quase-orgânicas, que parecem obedecer a certas leis naturais de gênese e crescimento dos seres vivos (Kawaguchi, 1982: 223-230). Tudo muito selvagem, anárquico, irregular e produzido com uma liberdade que não lembra nem de longe os protótipos lisos e regulares da computação gráfica rotineira [Veja as imagens do vídeo Eggy (1991) de Kawaguchi]. Quer isso dizer então que a intervenção no interior da caixa preta só é possível a uma classe muito especial de artistas, aquela dotada também de competência científica e tecnológica? É verdade que muitos dos pioneiros da computer art, como Manfred Mohr, Edvard Zajec e Duane Palyka, eram também e coincidentemente engenheiros, programadores e matemáticos, acumulando talentos ao mesmo tempo nas artes plásticas e nas ciências exatas. Outros, porém, menos dotados em termos de formação técnica, descobriram os seus próprios caminhos e acabaram por lançar uma luz nova sobre esse problema. Naturalmente, o caminho mais óbvio dos artistas no universo das competências tecnológicas é o trabalho em parceria. Nam June Paik, por exemplo, soube extrair todos os benefícios de sua parceria com o engenheiro japonês Suya Abe e, sem este último, ele provavelmente nunca teria logrado seu sintetizador de imagens eletrônicas, responsável por boa parte de sua célebre iconografia. No ambiente brasileiro, seria inevitável a menção de Waldemar Cordeiro, artista que se beneficiou grandemente do trabalho conjunto com o físico italiano Giorgio Moscati para construir suas imagens digitais, já na década de 60. Nos territórios da arte que lida com processos tecnológicos, a parceria possibilita dar forma orgânica aos vários talentos diferenciados e equacionar certeiramente as atuais demandas do trabalho artístico, que são conhecimento e intuição, sensibilidade e rigor, disciplina e anarquia criativa. Artistas, em geral, não dominam problemas científicos e tecnológicos; cientistas e engenheiros, em contrapartida, não estão a par do complexo intrincado de motivações da arte contemporânea. Conjuntamente, ambos podem superar suas respectivas deficiências e contribuir para recuperar a antiga idéia grega de téchne, que compreendia tanto a invenção técnica quanto a expressão artística. Para isso, talvez seja necessário relativizar as contribuições de todas as inteligências e de todas as sensibilidades que concorrem para configurar a experiência estética contemporânea. Isso implica, é claro, uma desmistificação de certos valores convencionais ou até mesmo arrogantes, inspirados na idéia de que a "obra" seria o produto de um gênio criativo individual, que ocuparia uma posição superior na hierarquia das competências do fazer artístico. Quando homens como Nam June Paik ou Woody Vasulka sentam-se diante de um sintetizador eletrônico de imagem, em geral assessorados por engenheiros e técnicos de som, e se põem a intervir diretamente no fluxo de elétrons de um tubo de raios catódicos, eles estão, na verdade, efetuando um diálogo com a máquina, um diálogo em que nenhuma das partes produz uma determinação final. Muitos dos resultados obtidos jamais poderiam ter sido premeditados ou planejados pelo artista ou por seus engenheiros, mas também não poderiam emergir a partir de uma utilização apenas convencional da máquina, dentro dos seus padrões "normais" de funcionamento. Antes, tais resultados são às vezes derivados de uma conjugação de fatores, que inclui todos os talentos implicados na materialização de uma obra, incluindo o espectador, e na qual o acaso não deixa de jogar também um papel importante. Se a "obra" obtida através desse processo é criação da máquina, dos engenheiros que a programaram ou do artista que a desviou de sua função original constitui questão irresolúvel e por isso mesmo obsoleta. Há cada vez menor pertinência em encarar os produtos e processos estéticos contemporâneos como individualmente motivados, como manifestações de estilo de um gênio singular, do que como um trabalho de equipe, socialmente motivado, em que o resultado não pode consistir em outra coisa que um jogo de tensões entre os mais variados agentes e fatores, uma economia simbólica de natureza dialógica, como diz Couchot (1997). Aparelhos, processos e suportes possibilitados pelas novas tecnologias repercutem, como bem o sabemos, em nossos sistemas de vida e de pensamento, em nossa capacidade imaginativa e nas nossas formas de percepção do mundo. Cabe à arte fazer desencadear todas essas conseqüências, nos seus aspectos grandes e pequenos, positivos e negativos, tornando explícito aquilo que nas mãos dos funcionários da produção ficaria apenas enrustido, desapercebido ou mascarado. Essa atividade é fundamentalmente contraditória: de um lado, trata-se de repensar o próprio conceito de arte, absorvendo construtiva e positivamente os novos processos formativos abertos pelas máquinas; de outro, trata-se de tornar também sensíveis e explícitas as finalidades embutidas em grande parte dos projetos tecnológicos, sejam elas de natureza bélica, policial ou ideológica. Voltando a Flusser, a arte coloca hoje os homens diante do desafio de poder viver livremente num mundo programado por aparelhos. "Apontar o caminho da liberdade" é, segundo Flusser (1985b: 84), "a única revolução ainda possível". Arlindo Machado OBRAS CITADAS: Bellour,
Raymond (1990). "La double hélice". In Passages de l'image,
R. Bellour et alii, org. Paris: Centre Georges Pompidou, pp. 37-56. < c r i t i c a© arteUna - Todos los derechos reservados. Registro a la propiedad intelectual N.706.777 © arteUna - Todos los derechos reservados. Registro a la propiedad intelectual N.706.777
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